Texto de opinião de João Paulo Narciso, diretor do Correio do Ribatejo. O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.
Somos Centenários. Crescemos, todos, no cinzentismo das sombras até que o grito Liberdade se ouviu nas redacções. É o percurso natural de quem percorre a linha do Tempo e regista memórias em papel desde há três séculos.
A partir do Golpe Militar de 28 de Maio de 1926 e com a afirmação de Salazar no poder, a censura limitou a liberdade de expressão da Imprensa, quer a nacional quer a “da província”, acompanhada de perto pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN).
Em 1934, segundo o SPN, existiam em Portugal 148 Jornais Situacionistas, 43 Neutros e 56 Anti-Situacionsitas. Vivia-se uma política de asfixia da Imprensa independente e desfavorável ao regime.
Na década de 40 e após a vitória dos aliados na II Guerra Mundial, o então ‘Correio da Estremadura’ (hoje ‘Correio do Ribatejo’), que se publica em Santarém desde 1891, adoptou um tom moderado de forma a permitir a sobrevivência do jornal perante a censura e a ditadura. Esta foi a receita seguida por muitas outras publicações que souberam sobreviver e adaptar-se.
As ‘velhas lamparinas’ eram espaços de História e Literatura, bastiões dos interesses e valores regionais, escritos num estilo literário, elegante no traçado, riquíssimo na forma e no conteúdo, um léxico que denota a leitura dos escritores clássicos e o esmero próprio de quem amava e cultivava os primores da Língua Portuguesa.
Quem pretender traçar o pulsar da sua terra terá, forçosamente, de folhear as páginas de um qualquer Jornal Centenário.
Há 13 anos, perguntei a mim mesmo: quem está por detrás de títulos como o ‘Aurora do Lima’, a ‘Soberania do Povo’, o ‘Cardeal Saraiva’. Quem são estes Homens e Mulheres que teimam em vencer o tempo, resistir às sucessivas mudanças, ter no sofisticado presente ‘velhas lamparinas’ que nos iluminavam, à média luz, os finais dos Séculos XIX e XX?
Lancei-lhes o convite e recebi-os em Santarém naquele que foi o 1.º Encontro de Imprensa Centenária no nosso país.
A iniciativa decorreu no âmbito das comemorações do 120.º Aniversário do ‘Correio do Ribatejo’ e reuniu um ‘milénio’ de memórias para, segundo se disse “enaltecer o passado, dar resposta às reais exigências do presente e preparar o nosso futuro no honroso caminho da preservação e continuidade destes títulos” com mais de 100 anos de experiência, não 100 anos de uma idade que nos pesa.
A história dos jornais não pode ser vista sem o enquadramento do século XIX, uma época de ideais puros, de disputas ideológicas acesas, em que se viveram tempos de mudança, política, mas também económica e social. Surgiram inúmeros jornais que muitas vezes não passavam de meras “folhas” em que o director era o proprietário, o editor e o jornalista. Eram, acima de tudo, jornais combativos, mais interessados na “sua verdade” do que na verdade jornalística como hoje a entendemos. Muitos já ficaram pelo caminho por razões várias, apenas os mais fortes sobreviveram e continuam a ser a voz dos sem voz.
Já em Democracia e em Liberdade surgiu a boa intenção – até hoje apenas isso – de candidatar a Património da Humanidade o trabalho produzido pelos Jornais Regionais Centenários do País. Despertar essa rede imensa e única no mundo, de páginas impressas amarelecidas pelo tempo. Estávamos em 2011 e a Associação Portuguesa de Imprensa (API), pegando na iniciativa do ‘Correio do Ribatejo’, lançava o Movimento de Reconhecimento dos Jornais Centenários Portugueses como Património Imaterial de Portugal e, depois, da Unesco. A ideia chegou a passar pela criação de uma base de dados dos Jornais Centenários, mas por ter um conceito material (o resultado da digitalização dos títulos), não pegou.
Passou-se a considerar Património Imaterial a relação dos títulos com as localidades ou populações que serviam, mas uma revisão da Lei portuguesa sobre o Património Imaterial deitou tudo a perder e não colheu o apoio das entidades oficiais, limitado que estava a bolsas geográficas, não apresentando uma cobertura nacional.
De seguida, falou-se na existência de uma “maneira portuguesa” de fazer e difundir notícias e informação jornalística, sendo os jornais centenários a verificação prática e no tempo de tal modelo. Esta ideia tem quase dez anos e o reconhecimento dos jornais centenários portugueses ainda não avançou.
Mais tarde, as intenções ganharam escala e abriram-se ao Brasil e até a Espanha. Ainda no seio da API, a ideia era integrar, nesta candidatura, títulos centenários brasileiros e espanhóis, candidatando-os a ‘Memória do Mundo da Unesco’. Depois de uma exposição de Jornais Centenários portugueses e brasileiros no Recife, apontou-se o ano de 2020 para avançar com o projecto, assente em três pilares: combate às “fake news”, na digitalização dos conteúdos para disponibilização do acervo ao público e no renascer dos arquivos das publicações centenárias.
Há sete anos, no dia em que se comemoravam 43 de Democracia, o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa recebeu, no Palácio de Belém, a API e os representantes de 31 publicações periódicas centenárias, para lhes manifestar reconhecimento pela longevidade. A data, 25 de Abril de 2017, terá sido escolhida pelo simbolismo, uma vez que a ‘Revolução dos Cravos’ permitiu devolver aos portugueses os direitos, liberdades e garantias fundamentais, entre elas a liberdade de Imprensa.
Manter a publicação, durante mais de cem anos, vencer crises, testemunhar guerras e catástrofes, enfrentar ditaduras e repressões de vária ordem, é a exemplar demonstração de persistência, de coragem e de crença nos valores da liberdade de informação e na importância da Imprensa. Uma importância que todos reconhecem quando temos pela frente mais um Dia Mundial da Liberdade de Imprensa para celebrar.
Sou director de um Jornal com 133 anos de história: o Correio do Ribatejo, fundado a 9 de Abril de 1891, ainda como ‘Correio da Extremadura’. Um Jornal “com Gente dentro” que guarda memórias centenárias que prevalecem, num tempo em que o jornalismo não tem memória, está mais pobre, não tem espessura, fica-se pela frase fácil e pela manchete assassina.
Somos apenas mais um, entre as quatro dezenas de títulos portadores de uma herança colectiva que está em risco de se perder na voragem desse tempo adamastor, sobretudo devido à mutação significativa da forma como hoje se procuram as notícias, através da explosão do digital e dos dispositivos móveis, onde a rapidez na obtenção de informação (que muitas vezes não o é) é levada ao limite.
Somos dos que continuamos a acreditar que os Jornais devem ser pensados entre a internet e o papel e que artigos de investigação e reportagens podem fazer a diferença na preservação dos títulos impressos, hoje, alvos fáceis dos comunicados de imprensa produzidos à medida por agências que defendem os interesses de quem lhes paga – o cancro do jornalismo contemporâneo.
Daí que deixe aqui, rematando, a minha homenagem a todos os resistentes Centenários que nascidos no ‘país das sombras’ reclamam e reafirmam a liberdade colorida de existirem há 50 anos, em Democracia.
Jornais que a troco de quase nada nos têm dado tanto.